Compartilhado de https://www.ijba.com.br/o-coracao-resiliente/, Instituto Junguiano da Bahia (IJBA), 18 de abril de 2018
Apenas excepcionalmente eu insiro no
blog artigos de outros autores. Só quando me identifico muito com o texto e
desejo presenteá-lo aos meus leitores...
Tom Simões
“Os amigos são os amores do ‘coração que ama as histórias’, que ama ‘com-versar’; são testemunhas de nossa vida, como nossos cúmplices, e carregam nosso coração em suas mãos em alguns momentos, nas noites mais escuras da alma”.
“Boris Cyrulnik, psiquiatra, especialista em Etologia Humana, debruçou-se sobre o tema da resiliência como poucos em nosso tempo. Faz parte da grande amplificação que ele trouxe ao tema a constatação de que toda resiliência necessita de um intenso processo de ressignificação da vida que, no entanto, não se pode fazer sozinho.
Isso aparentemente lança um conflito entre a ideia de que toda a individuação é pessoal e intransferível, por um lado, mas que, por outro lado, não somos capazes de fato de nos reconstruir sem um certo trabalho coletivo de tapeçaria: cada um traz um fio e o meu fio encontra seu lugar dentro do tecido, definindo a forma que me cabe trazer ao mundo.
No entanto, se olharmos com mais cuidado, esse conflito de fato não existe. A ciência quântica do século XX demonstrou claramente que há uma rede oculta de conexões em todo o mundo vivo, nos mais diversos níveis, do biológico ao social, passando certamente pelo psíquico.
A contribuição de C. G. Jung acerca da interpenetração existente entre a psique individual, familiar, social e coletiva é valiosa para entendermos que, se nosso caminho, dores e escolhas sempre são apenas nossos, é também verdade que nós mesmos nunca somos apenas nossos.
Nisso é que podemos aproximar Jung de Cyrulnik, na compreensão da importância dos vínculos. Jung mostrou claramente os vínculos psíquicos, os vínculos entre imagens e imaginários que as manifestações do inconsciente revelam, nas imagens simbólicas, arquétipos e motivos da mitologia universal presentes nos sonhos, nos devaneios, nas expressões artísticas. Cyrulnik, por sua vez, fala dos vínculos interpessoais, mostrando claramente a importância dos relatos e das narrativas criadas em conjunto na construção de uma nova realidade de sentido. Quando partilhamos sentidos, atribuímos sentido de fato às vivências; isso faz com que ele volte em vários de seus livros à questão das narrativas partilhadas e dos vínculos afetivos como elementos centrais nos processos de resiliência.
Para mim,
um dos motivos que mais representam esse processo do qual ambos tratam, dos
entrelaçamentos entre o indivíduo e a rede, é a simbologia que envolve o
coração – o coração com suas veias a bombear o alimento que percorre o corpo
pelos fios que tecem a rede de todo o sistema circulatório, alimentando órgãos
e tecidos. Não à toa o coração sempre foi o órgão do corpo que o imaginário
popular atribui à sede do amor, lembrando que o primeiro Eros na Mitologia
Grega, presente nos mitos de criação, era o Grande Eros, representante do
movimento de união, vínculo. Amor é, enfim, conexão e rede. Amor é também a
grande busca, e o sentimento de que ele falta é a grande queixa a lotar os
consultórios (e as igrejas…).
Falo aqui dessa situação comum que começa com
a crença de que falta um outro para, enfim, às vezes depois de algumas décadas,
perceber-se que o que falta não é um outro, mas sim aprendermos dentro de nós
mesmos o caminho de acesso à rede da amorosidade cósmica. E isso se ensaia mais
com os amigos do que propriamente no contexto dos encontros românticos.
Vinicius
de Moraes tinha absoluta razão ao dizer que seria capaz de viver sem
todos seus amores, referindo-se às muitas mulheres que teve, mas não
sobreviveria sem seus amigos. Os amigos são os amores do ‘coração que ama as
histórias’, que ama ‘com-versar’; são testemunhas de nossa vida, como nossos
cúmplices, e carregam nosso coração em suas mãos em alguns momentos, nas noites
mais escuras da alma.
As histórias que criamos com os amigos
constituem uma forma de o coração atribuir sentido à nossa vida − ao nosso
presente e ao nosso passado −, e, com isso, tornar suportável o vazio do
futuro.
Como
reconhecemos os amigos? Nosso coração fica alegre. A alegria,
diferentemente da felicidade (que é sempre tão idealizada e vítima de tantas
projeções e enganos), é espontânea e incontrolável. Ela levanta-se em fogaréu
quando quer; e o corpo ri, gargalha, estremece na presença de algo grande. A
alegria é despretensiosa e, nisso está sua grandeza. Ela é Graça, e não
merecimento. Quando o coração se alegra, enche-se de sentido: sente que vive.
Quando o coração dói pode ser pela falta de alegria ou pelo transbordamento da vida. E, muitas vezes, quando o coração dói apenas está pedindo novas histórias, novos caminhos, novos entrelaçamentos. Atire a primeira pedra quem nunca teve o coração partido. Jung disse certa vez:
- E onde estão os grandes sábios da vida e do mundo, que não apenas falam do sentido, mas também o possuem? Não se pode imaginar nenhum sistema e nenhuma verdade que forneçam aquilo de que o enfermo precisa para a vida, ou seja: fé, esperança, amor e autorreconhecimento. Essas quatro maiores conquistas do esforço humano são também bênçãos, que não se pode ensinar nem aprender, dar nem tomar, reter nem obter, pois elas estão conectadas a uma condição irracional, avessa à vontade humana, ou seja, à vivência. As vivências nunca podem ser ‘fabricadas’.
O
coração também não pode ser fabricado, mesmo que em seu lugar haja uma
prótese funcional de alta tecnologia. Ainda assim, não será um coração até ter
amado, sofrido e imaginado por meio dele. Ou até ter se partido. Um coração tem
de nos carregar na vida enquanto acreditamos que o estamos carregando no peito.
Viver uma
vida em meio aos fogaréus do coração, plena de amigos, é viver uma vida que faz
sentido. É isso que desejo a todos nós: não importa quando nosso coração vai
parar de bater, o que importa é que, enquanto ele pulse, nós brilhemos,
juntos”.
·
Referências:
Cyrulnik, B. O murmúrio dos fantasmas, São Paulo: Martins Fontes, 2005
Resiliência – essa inaudita capacidade de
construção humana, Lisboa, Instituto Piaget, 2003
Jung, C. G. Sobre o amor, São Paulo,
Ideias & Letras, 2005
Dra. Malena Segura Contrera, analista em formação do Instituto Junguiano de Ensino e Pesquisa (IJEP)
Muito bom! As coisas negativas são próprias do ainda atrasado mundo Terra e não existem nos mundos de maior evolução esses sim autores e disseminadores da grande teia de Amor Universal. Todos viemos para cá aprender a Amar, quando aprendemos, da vida de encarnados não mais precisamos.
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