Escritora, nasceu em Belo Horizonte, em 1946, numa favela. De
origem humilde, migrou para o Rio de Janeiro na década de 1970. Filha de uma lavadeira, mantinha
um diário onde anotava as dificuldades de um cotidiano sofrido. Conceição
cresceu rodeada por palavras. Teve que conciliar os estudos com o trabalho como
empregada doméstica, até concluir o curso Normal, em 1971, já aos 25 anos.
Graduada em Letras pela UFRJ, trabalhou como
professora da rede pública de ensino da capital fluminense. É Mestre em
Literatura Brasileira pela PUC do Rio de Janeiro e Doutora em Literatura
Comparada pela Universidade Federal Fluminense.
Uma das principais expoentes da literatura Brasileira e Afro-brasileira
atualmente, Conceição Evaristo tornou-se também uma escritora negra de projeção
internacional, com livros traduzidos em outros idiomas. Consta em http://www.palmares.gov.br/conceicao-evaristo que a escritora traz em sua
literatura profundas reflexões acerca das questões de raça e de gênero, com o
objetivo claro de revelar a desigualdade velada em nossa sociedade, de
recuperar uma memória sofrida da população afro-brasileira em toda sua riqueza
e sua potencialidade de ação. “É uma mulher que tem cuidado de abrir espaços
para outras mulheres negras se apresentarem no mundo da literatura.”
***
"A CIÊNCIA,
os avanços institucionais e o progresso moral que experimentamos do século 18
para cá só ocorreram porque ideias que pareciam absolutamente respeitáveis,
quando não sagradas, foram contestadas e substituídas."
·
Hélio
Schwartsman, ´Tolerar até os boçais', Folha de S.Paulo, Editoriais, 6/7/2018
***
Vamos então
conhecer um pouco o pensamento de Conceição Evaristo, com base em trechos recolhidos
de entrevistas, devidamente referenciados, por mim selecionados:
“A
NOSSA voz, quando se torna texto literário, incomoda”.
“MINHA
preocupação tem sido também não ser tratada como excepcionalidade, porque
quando você trata as pessoas como excepcionalidade, você retira essas pessoas
da coletividade que ela representa e eu não vou permitir que façam isso
comigo.”
“EU SEMPRE escrevi, falava sobre minha festa de aniversário, a fazenda onde
passei as minhas férias. E eu fico pensando que ficcionalizar aquela época me
permitiu sonhar.”
“COMECEI a escrever
muito cedo, menina. A escrita pra mim sempre foi um suporte para lidar com o mundo
e, ao mesmo tempo, também colocar um questionamento para o mundo. Muitas das
minhas perguntas de infância, de adolescência, foram respondidas ou
aprofundadas através da escrita e da leitura. Todas as minhas questões da
adolescência, aquelas dúvidas, eu só aguentei com a ajuda da escrita. Além das
perguntas da adolescência, pelas quais todo mundo passa nessa fase da vida,
também foi marcante o momento em que percebi as questões raciais. Eu, como
menina negra. O que havia de estranho nisso tudo, notar a questão racial, a
pobreza em que a gente vivia. Naquele momento eu já sabia que queria alguma
coisa, só não sabia o quê. Mas uma coisa eu tinha certeza: que aquela vida que
eu tinha não podia ser eterna. Eu tinha a certeza que aquela vida não era
justa. Eu não sabia se a escrita poderia ser um caminho para mim, mas a escrita
já era uma necessidade. Já era um alento e ao mesmo tempo também um local de
tormento, um lugar onde eu colocava todas as minhas dúvidas.”
·
Na
introdução de Ponciá Vicêncio, a senhora fala que seus personagens são como
parentes de primeiro grau. Como isso funciona?,
pergunta Nahima Maciel:
“NA VERDADE, faço uma brincadeira. Um
texto literário é como se fosse um filho e alguns personagens, conheço mais de
perto. Minha ficção tem muito a vida real como pano de fundo, mas isso não
significa que tudo que eu escreva seja algo que tenha vivido. Não é. Pode ser
uma observação, uma história que ouvi contar, um fato que assisti. E ‘Ponciá Vicêncio’, ao trazer a memória da
escravidão, é algo que tem a ver com as histórias que cresci ouvindo sobre a
escravidão. Como tem também em ‘Becos da
Memória’. São histórias herdadas da oralidade. Muito da memória da
escravidão foi contada na minha infância, eu escutava essas histórias dentro de
casa”, diz a autora.
·
Conceição lembra um
episódio vivenciado no Rio de Janeiro, no prédio no qual aluga um escritório:
“CERTA vez, ao sair do local,
esbarrou em uma senhora com formação de arquivista que reconheceu o rosto da
autora, de algum programa de entrevistas. Perguntou o que ela fazia. Conceição
respondeu que era escritora e a mulher imediatamente perguntou se a romancista
era autora de livros de receitas. ‘E não estamos falando de uma pessoa sem
leitura! Essa até deu um salto adiante: mulher negra até pode escrever, mas tem
que ser um livro de receita. Então, escrever e publicar são atos de rebeldia
que nos colocam em outro lugar, contrariando o imaginário que a sociedade
brasileira tem sobre nós”, diz a autora.
“EU DIGO que tudo que
escrevo, seja de um ponto de vista crítico, como pesquisadora, ou de um ponto
de vista da criação literária, é profundamente marcado pela minha condição de
mulher negra na sociedade brasileira. O que tenho percebido é o seguinte: essa
‘escrevivência’ tem ajudado outras mulheres a se perceberem. Percebo cada vez
mais que, na medida em que essas mulheres se encontram nos meus textos e
encontram os meus textos, elas se apossam da vida com muito mais certeza. Acho
que a minha escrita tem possibilitado que essas mulheres acreditem mais em si
mesmas, que se reconheçam, que sabemos ser muito difícil. A literatura que nós conhecemos, essa literatura canônica,
ela não nos representa e quando nos representa é sempre de uma maneira
limitada, de uma maneira estereotipada. Então o meu texto é um lugar onde as
mulheres se sentem em casa, se sentem reconhecidas de verdade.”
“EU NÃO tenho uma
rotina de escritora. Hoje, menos ainda, pelo fato de estar sempre em debates,
palestras, encontros… E além de ser escritora, sou uma dona de casa. Eu cuido
da minha casa, só tenho ajuda quando vou viajar e preciso deixar uma companhia
para a minha filha. Fora isso, a rotina de casa é minha. Hoje estou aposentada,
mas sempre trabalhei, estudei, dava aula, ia pros tratamentos da minha filha,
lutando pela sobrevivência… Então não tenho uma rotina de escritora. Aliás,
esse é um sonho que tenho.”
“EU NÃO nasci rodeada de livros e, sim,
rodeada de palavras. Desde pequena, em minha casa, se mantinha o hábito da
contação de histórias, inclusive, as de tradição africana. Além disso, sou
mineira e temos como característica contar ‘causos’. Portanto, cresci escutando
histórias. Qualquer situação cotidiana se transformava em história, era criado
um enredo. Por pura intuição, minha mãe promovia oficinas de palavras,
principalmente em função do pouco material impresso que chegava em nossas mãos.
Pegávamos as revistas ou jornais que apareciam e analisávamos as figuras,
despertávamos a imaginação. Essa didática da oralidade criou um encantamento
pelas palavras, ao mesmo tempo que existia o desejo pela literatura. Estudei em
uma boa escola pública em Belo Horizonte, o que também ajudou a desenvolver meu
gosto pelo texto escrito.”
Que dicas você daria para as mulheres
mais jovens que sonham em ser escritoras?, pergunta Djamila
Ribeiro
“A PRIMEIRA dica que dou é dizer que a
literatura é a arte da palavra. O bom musicista treina por horas, escuta
música. Eu acredito inclusive naquele sujeito que é autodidata, que estuda
muito também. Eu acredito que a gente precisa ter esse cuidado de que estamos produzindo
arte. Você está lidando com a palavra e se a gente quer se colocar como alguém
que está produzindo literatura, precisamos ter consciência daquilo que estamos
produzindo. Não pode divagar: o primeiro exercício é escrever, depois a gente
vê como publica. Mas vamos escrever primeiro e não cair na ilusão de que a
literatura vai nos acolher logo. É um exercício de escrita e de militância”,
revela Conceição Evaristo.
·
Conceição Evaristo: “GOSTO muito de uma frase do Nelson Mandela: ‘Ninguém nasce odiando
outra pessoa pela cor de sua pele, ou por sua origem, ou sua religião. Para
odiar, as pessoas precisam aprender, e se elas aprendem a odiar, podem ser
ensinadas a amar, pois o amor chega mais naturalmente ao coração humano do que
o seu oposto. A bondade humana é uma chama que pode ser oculta, jamais extinta’.
Não gosto do termo intolerância, vejo isso como uma dificuldade de conviver com
o outro, mas prefiro acreditar que a crueldade não é inata e, sim, adquirida.”
·
Para
você, as redes sociais assumem um papel importante como fórum de debate sobre
as questões referentes aos negros?, pergunta Lucas Vasques:
“CREIO que as redes sociais
tenham um papel importantíssimo nesse debate. Na pior das hipóteses fez com que
o racista saísse do armário. Não acompanho muito, porque vejo lá muitas
discussões que não me interessam mais. Contudo, observo que há uma grande parcela
de mulheres negras, especialmente as jovens, que debate essas questões com
intensidade. As redes sociais têm um papel positivo nisso”, diz a escritora.
Vozes-mulheres
A VOZ de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes.
Recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.
Imagem: Luciana
Serra, https://www.uai.com.br/app/noticia/artes-e-livros/2016/11/26/noticias-artes-e-livros,197924/conceicao-evaristo-lanca-livro-dando-voz-as-mulheres-negras-do-brasil.shtml
“OLHA, a ficha ainda está caindo, mas é muito bom perceber que o seu texto cai na emoção do outro, mexe com o outro. E é muito meus textos fazerem sentido na vida das pessoas. Mas mais do que isso, eu espero que essa Ocupação ajude a mudar o imaginário das pessoas de colocar as mulheres negras somente em lugares subalternos e submissos. É pensar que as mulheres negras estão produzindo na área da literatura, filosofia, psicologia, medicina. É pensar que todas competências que uma pessoa branca pode ter, as mulheres negras têm. Que essa ocupação sirva para despertar sobre o que outras mulheres negras estão fazendo”, revela a escritora.
Da calma e do silêncio
QUANDO eu
morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.
Quando meu olhar
Quando meu olhar
se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.
Quando meus pés
Quando meus pés
abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.
“PRECISAMOS
mostrar as nossas narrativas, temos que disputar. E eu preciso falar que os
meus primeiros leitores foram pessoas do movimento social negro. Cada leitor e
cada leitora levava pra sala de aula, pra academia. Então hoje, se eu chego
nesse espaço da Ocupação [Itaú], é um espaço que foi construído a partir da
leitura dos meus pares. Eu cheguei onde cheguei hoje por conta desse nosso
trabalho de formiguinha, que a gente sabe fazer muito bem.”
***
Outras fontes
de consulta: PENSADOR,
Frases e Pensamentos; e http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/188-conceicao-evaristo
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