Drauzio Varella, médico cancerologista (dirigiu o serviço de
Imunologia do Hospital do Câncer e foi um dos pioneiros no tratamento da Aids
no Brasil e do trabalho em prisões). Folha
de S.Paulo, 07/01/2017
(Tom Simões: Não costumo publicar textos de outros
autores neste blog. Mas esta extraordinária reflexão não me deixou dúvida. Por
expressar exatamente o meu sentimento em relação à destemperança das
comemorações de final de ano. Sobretudo por se tratar de palavras escritas por esse
singular Ser Drauzio Humano Varella,
um dos raros notáveis benfeitores deste nosso País.)
“AS FESTAS acabaram, mal posso acreditar. Essa época do ano não é fácil
para mim.
Fico agoniado com a chegada de dezembro. Nem terminou o mês anterior, as
lojas e os shoppings já se engalanam com árvores de plástico, abarrotadas de
bolas pendentes sem o menor compromisso com a harmonia das cores, laços de fita
reluzentes de purpurina enrolados em guirlandas de flores artificiais e, para completar,
a presença sorridente de Papai Noel.
Embora reconheça que o bom velhinho encanta o imaginário infantil e
reforça o orçamento doméstico de alguns senhores com excesso de peso, não
consigo compreender como um ser importado das catacumbas do inverno no
hemisfério norte, com gorro na cabeça, barba postiça, botas e roupa abafada
consegue sobreviver nestas paragens, por tantas décadas.
E as renas e o trenó? E as chaminés e os flocos de algodão que imitam
neve? Do ponto de vista estético, convenhamos que as imagens utilizadas para
criar o clima de Natal, além de impróprias para os trópicos, são cafonas,
sobretudo.
A aproximação do dia 25 provoca um frenesi incontrolável na população. O
nascimento do filho de Deus no cestinho de palha na manjedoura é comemorado com
uma fúria consumista que toma conta do mundo: há que comprar presentes para as
crianças, pais, mães e a parentalha toda.
Nos telejornais, as imagens das multidões que abrem caminho entre
sacolas, embrulhos e gente suada que mal consegue se mexer na 25 de Março são
as expressões mais vivas do chamado espírito natalino.
Nas famílias com algum poder aquisitivo as crianças recebem tantos
presentes que ficam muito mais excitadas em abrir os pacotes do que em olhar o
conteúdo.
As provações mais cruéis, no entanto, são impostas pelo trânsito e o
calor que se agrava a cada ano. Ficar preso nos engarrafamentos em temperaturas
acima de 30ºC, numa cidade emparedada como São Paulo, é experimentar a sensação
de estar num crematório. Depois de uma hora nesse martírio, o cidadão conclui
que o inferno talvez não seja insuportável, como dizem.
Calor assim, não é para gente civilizada. Nessas horas sufocantes, meu
único consolo é pensar na infelicidade dos Papais Noéis espalhados pelas lojas
do país inteiro, vestindo roupas de tecido sintético, tirando foto com as
criancinhas no colo e sorrindo com bondade no meio da barba branca.
A despeito da crise financeira, os bares são tomados por hordas ruidosas
que avançam sobre as porções de fritas, calabresa e provolone espalhadas entre
centenas de garrafas de cerveja. É o pessoal das firmas. Inebriados pelo
álcool, não se cansam de abraçar, desejar feliz Natal e jurar amizade eterna a
colegas que talvez odeiem. Sentar nas imediações de uma mesa dessas é um convite
ao mutismo, um atentado contra a audição humana.
Para quem o trabalho não dá trégua, como livrar-se dos convites para
almoços, jantares e as reuniões de congraçamento? Se você aceita, vai comer e
beber mais do que devia, tirar fotos e aguentar mais gente chata do que
gostaria, caso contrário, dirão que você é metido a besta.
As festividades de Natal contradizem o dito popular: "não há mal
que sempre dure". Basta ficarmos livres delas, surge o tormento do
Ano-Novo.
A aproximação da última noite do ano provoca uma neurose de movimento
que deixa as pessoas desesperadas para sair do local em que se encontram. As
pressões familiares para viajar ficam insuportáveis; impossível resistir.
Conciliar no seio da família os interesses de cada um exige habilidade circense.
Passagens e hotéis a preços abusivos, carros cheios de crianças em
estradas que parecem pátios de estacionamento, praias sem espaço para uma
esteira, filas em padarias e supermercados, duas horas de espera por um filé
com fritas no restaurante, cerveja quente, falta de água, não há tormento capaz
de roubar a esperança da felicidade plena que chegará pontualmente à meia-noite
do dia 31.
Na manhã seguinte, lixo e garrafas nas ruas e nas praias, sede
insaciável, dor de cabeça e os preparativos para a viagem de volta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Para comentar mais facilmente, ao clicar em “Comentar como – Selecionar Perfil”, selecione NOME/URL. Após fazer a seleção, digite seu NOME e, em URL (preenchimento opcional), coloque o endereço do seu site.