Tom Simões, tomsimoes@hotmail.com, Santos (São
Paulo, Brasil), setembro 2016
EM SEU ARTIGO ‘Funcional’, publicado na Folha de S.Paulo de 02/09/2016, Tati
Bernardi escreve: “Quando digo a qualquer psiquiatra que ‘não curto exatamente
viajar’ é como se eu apertasse o play de uma música chata, um hit de verão, com
um único refrão que diz: au-au-au você não é funcional!”.
Foi a declaração dessa jornalista que me inspirou a
escrever sobre o assunto, por me identificar com seu sentimento. Eu também não
mais aprecio viajar. Já gostei em outra época. E quando digo isso, todo mundo
fica inconformado. Sobretudo por me encontrar numa condição financeira
estabilizada, fato que facilitaria alguns projetos de viagem.
Hoje eu penso que a viagem ‘para fora’ não nos torna
necessariamente seres humanos melhores... Acredito que apenas ‘para dentro’ é
possível redescobrir-se e se tornar uma força poderosa. Quando isto acontece,
vem a vontade de compartilhar os achados. É claro que isso não impede alguém
que goste de correr o Mundo de ser também capaz de experimentar sua poderosa
força interior. O que não se pode é convencer alguém a gostar de alguma coisa.
Eu gosto de circo. Quem gosta de circo? Eu gosto de remar. Quem aprecia a
canoagem? Eu gosto de ficar no silêncio. Quem gosta? Eu não gosto de assistir à
televisão. Quem conhece muitas pessoas assim? Eu gosto de passar o domingo
lendo e escrevendo, sobretudo em dias chuvosos ou nublados. Quem conhece muitos
assim?
Minha filha prefere a visão de Amyr Klink, que diz:
"Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias,
imagens, livro ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender
o que é seu. Para um dia plantar suas próprias árvores e dar-lhes valor.
Conhecer o frio para desfrutar do calor. E o oposto. Sentir a distância e o
desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para
lugares que não conhece, para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo
como imaginamos e não simplesmente como ele é ou pode ser. Que nos faz
professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e
simplesmente ir ver”.
Eu acho que o Mundo está precisando de gente capaz de
transformá-lo e é nessa viagem que eu embarco. E o que me deixa feliz é que não
embarco sozinho, eu sempre levo muita gente comigo, e sem gastos, gente
interessada em se desprender do que é ditado pela maioria, até mesmo gente que
costuma viajar para o exterior... Portanto, o que vale nesta vida é optar
sempre por algo que nos transforme em pessoas melhores, não importa a natureza
das nossas escolhas, importa mesmo é que nossas andanças por este Mundo nos
levem a experimentar algum dia algo conhecido como ‘serenidade’, a felicidade
permanente, ou seja, a capacidade de aceitar a si mesmo, a vida e as pessoas
como elas são, mantendo sempre uma atitude realista, positiva e sábia em
relação a tudo, o que origina a paz interior.
Minha filha argumenta também: “Pai, na sua reflexão
sobre ‘gostar ou não de viajar’, gostaria que considerasse algumas coisas que
andei pensando ultimamente: 1. concordo com você que devemos buscar
continuamente nossa própria superação, a fim de nos tornarmos seres humanos
melhores para nós mesmos e para os outros. Essa busca é uma jornada incrível, o
que dá sentido à vida. E para que essa jornada seja rica, buscamos algumas
ferramentas: livros, cursos, esportes, pessoas... e por que não, viagens? Sim,
é nessa categoria que eu incluo as viagens: no conjunto de experiências que
temos ao longo da vida e que nos abrem horizontes para um conhecimento maior.
E, claro, assim como existem livros de má qualidade, cursos ruins, até esportes
sem propósito..., existem também viagens sem sentido. Mas não se pode
generalizar. Tudo depende do que se busca, do objetivo do explorador. Uma
viagem pra Machu Picchu e um cruzeiro de comes e bebes podem ser colocados no
mesmo saco? Claro que não. Existe um mundo incrível a ser descoberto – e que
nos transforma. Ninguém pode voltar igual ao que era antes após conhecer
cidades medievais ou lugares de natureza exuberante, para não mencionar tantos
outros exemplos. Um amigo seu fez um comentário irônico sobre a Disney no seu
post. Meu Deus, fiquei tão triste quando li... A Disney é um dos maiores cases
de sucesso da história, pela cultura da felicidade que nos ensina e propaga. É
um exemplo que está na bibliografia de grandes cursos de Administração,
Marketing, Psicologia... Algum dia poderemos falar mais sobre isso. Claro, se o
viajante míope só consegue enxergar um Mickey saltitante, a experiência será
pobre. Mas acredite: há uma história linda, incrível e de encher os olhos de
lágrimas por trás dos parques, a começar pela própria biografia de Walt Disney
(Há um filme na Netflix sobre a vida
dele.). 2. Temos que diferenciar ‘opinião’ de ‘preconceito’. Deveríamos nos
reservar o direito de ter opinião sobre algo que verdadeiramente
experimentamos. Preconceito, ao contrário, e como o próprio nome diz
(pré-conceito), já sugere uma opinião a respeito de algo que não conhecemos. É
julgamento. É cego. É parcial. Seria injusto, por exemplo, que eu saísse por aí
disseminando uma opinião sobre o budismo, já que nunca o experimentei. Isso não
me exime de ter uma visão sobre o tema, mas, de novo, não acho justo dizer que
não gosto de algo que nunca experimentei com os meus próprios sentidos. 3. Platão,
filósofo grego, em sua obra ‘Alegoria da
Caverna’, considerada uma das mais importantes da história da Filosofia, fala
sobre homens que nasceram presos em correntes dentro de uma caverna, e que
passavam todo o tempo olhando para a parede do fundo, iluminada pela luz gerada
por uma fogueira. Nessa parede eram projetadas sombras de estátuas
representando pessoas, animais, plantas e objetos, mostrando cenas e situações
do dia-a-dia. Os prisioneiros davam nomes às imagens (sombras), analisando e
julgando as situações. Um dia, porém, um dos prisioneiros foi forçado a sair
das correntes para poder explorar o interior da caverna e o mundo externo.
Entrando em contato com a realidade, ele percebeu que passou a vida toda
analisando e julgando apenas imagens projetadas por estátuas. Ao sair da
caverna e entrar em contato com o mundo real, ficou encantado com os seres de
verdade, com a natureza, com os animais. Então voltou para a caverna para
passar todo o conhecimento adquirido fora da caverna para seus companheiros
ainda presos. Porém, foi ridicularizado ao contar tudo o que viu e sentiu, pois
seus colegas só conseguiam acreditar na realidade que enxergavam na parede
iluminada da caverna. Os prisioneiros o chamaram de louco e o ameaçaram de
morte caso não parasse de falar sobre aquelas ideias consideradas absurdas. O
que Platão quis dizer com o mito: os seres humanos têm uma visão distorcida da
realidade. No mito, os prisioneiros somos nós, que enxergamos e acreditamos
apenas em imagens criadas pela cultura, conceitos e informações que recebemos
durante a vida. A caverna simboliza o mundo, pois nos apresenta imagens que não
representam a realidade. Só é possível conhecer a realidade quando nos
libertamos dessas influências culturais e sociais, ou seja, quando saímos da
caverna. Acho essa uma ótima reflexão acerca do mundo que conhecemos versus o
mundo que realmente existe. E um convite para sairmos da caverna com as nossas
próprias pernas e experimentarmos novas culturas, novas histórias, novos ares –
para que experimentemos um novo ‘eu’”, finaliza.
Sabe, minha filha, a gente é um conjunto de
percepções, sentimentos, segredos, alegrias, tristezas, medos, inseguranças...,
que nos leva a decidir sobre isto ou aquilo... Tem aí todo um histórico de vida
que imprime a nossa identidade. Isto não quer dizer que não possamos mudar
comportamentos, conceitos... Não me fecho em minhas opiniões. Já gostei de
viajar. Hoje não é mais algo que se enquadra nos meus propósitos de vida.
Talvez eu possa mudar de opinião algum dia... Quem sabe!
Conversando sobre tudo isto com o amigo Roberto, ele
somou algo que enriquece a discussão: “Para muitos, filmes e fotos bastam para
ter estado num lugar. É também mais rápido, cômodo e barato assim. Para outros,
apenas os ângulos não registrados, as conversas improváveis e fora do script,
os cheiros e ruídos mínimos, isto é, a multidimensionalidade que só o presencial
viabiliza, tornam efetiva essa experiência. Outros ainda têm substitutivos para
tais viagens, recusando-se a barganhar seu tempo com algo que pode ser
frustrante. Quem está certo? Difícil dizer. Eu marcaria no item ‘todas as
alternativas anteriores’. E também diria: que tal respeitar o livre-arbítrio de
cada qual? Deixar que preencham suas vidas com o que considerarem mais
interessante. Sim, isto seria o óbvio e o prático. Mas as coisas não são tão
simples assim, pois há que se considerar o viés das diferentes mandalas a que
escolhemos pertencer, já que com todas elas firmamos compromissos. O
compromisso da presença na família, por exemplo, é muito forte (o mais forte)
e, frequentemente, nos pede por partilha presencial das experiências. A foto pelo
celular, a troca pelo WhatsApp ou mesmo a conversa com imagem pelo DUO não
bastam. Não tem o calor humano, não há como se entremear em simultâneas
conversas paralelas, o tom de voz eletrônico não faz jus ao real, o beijo e o
tapinha que completam a gozação (ou a consolação) são impossíveis. Por estas e
outras é que embarcar nas viagens em família é exigência real contra o vazio
que a ausência deixaria, comprometendo a alegria da mandala. Nessas horas, o
livre-arbítrio de cada um vai para o espaço, exigindo dos mais preparados o
altruísmo de uma amorosa presença. Só ao fim de várias viagens, de muitas experiências,
de duas uma: ‘ainda bem que vim, pois adorei o que vi e aprendi’ ou ‘basta,
desta vez eu não irei’. Mas só depois de muitas vezes.”
Para não dizer que não aprecio totalmente viagens, há
algo com que me identifico: fazer trilhas. Não descarto a possibilidade de
algum dia experimentá-las. Quem tem esse sonho geralmente pensa no caminho de
Santiago de Compostela, na Espanha. Mas não é preciso ir tão longe. No Brasil
existem alguns percursos com a mesma finalidade. Por exemplo: inspirado no
caminho de Santiago de Compostela, o ‘Caminho da Fé’ foi oficializado há cerca
de 12 anos no Brasil. Com 948 quilômetros de extensão – contando seus vários
ramais -, passa por 36 cidades de São Paulo e Minas Gerais até chegar a
Aparecida. A duração da rota depende do ritmo do peregrino – de 15 a 20 dias a
pé ou de sete a dez de bicicleta.
Mas há outras trilhas brasileiras. Na serra da
Mantiqueira, em Monte Verde (MG), a 1.400 m de altitude, tem um bom número de
rotas de caminhada. Bem sinalizadas e destinadas a iniciantes, podem ter até
quatro horas de duração. Já a rota entre Petrópolis e Teresópolis (RJ), pelas
montanhas do parque nacional da Serra dos Órgãos, é um clássico. Leva ao menos
três dias e os peregrinos podem dormir em albergues. Tem uma subida íngreme e
cansativa no início, mas o visual recompensa, segundo noticiou a Folha de S.Paulo de 30/10/2014.
Além de uma opção de ecoturismo, a trilha ‘Caminho do
Mar, Estrada Velha de Santos’ é também um programa histórico-cultural. Em seu
percurso, vários monumentos e construções evidenciam a importância desse
caminho na história da interligação entre o planalto paulista e o litoral. São
9.200 m de descida, onde as pessoas fazem o trajeto a pé e apreciam as fantásticas
paisagens da Baixada Santista.
Há algo em todo este contexto que se ajusta muito bem,
escrito por Clarice Lispector: “Não me mostre o que esperam de mim porque vou
seguir meu coração, não me façam ser o que não sou. Não me convidem a ser igual
porque sinceramente sou diferente”.
·
Revisão do
texto:
Márcia Navarro Cipólli
“Todas as viagens são lindas, mesmo as que fizeres nas ruas do teu bairro. O encanto dependerá do teu estado de alma.”
ResponderExcluir* Rui Ribeiro Couto, 1898-1963, mais conhecido simplesmente como Ribeiro Couto: jornalista, magistrado, diplomata, poeta, contista e romancista brasileiro
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirviajar e ilusao
ResponderExcluirSou um pouco como vc. Não tenho essa necessidade pulsante de viajar. Até me dá uma preguiça fazer mala, me deslocar. Mas quando chego no destino até gosto, porque muda a rotina, muda o ar. Mas eu adoro minha casa, minhas coisas. Moro numa casa confortável, com marido, meus filhos, meus gatos, meu cachorro, meus livros, minhas lembranças. Gosto de morar na minha cidade, no meu bairro. Acho que sou feliz. Mas tantas pessoas me cobram gostar de viajar! Minha filha ama viajar e a estimulo. Mas comigo dá preguiça.
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