Clube Internacional de Regatas, Santos
(SP), Brasil
”Vestiário: templo sagrado do futebol, onde habitam as
vaidades de jogadores, técnicos e dirigentes; local onde só se pode dizer a
verdade”, escreve Paulo Vinícius Coelho, em sua crônica “Lugar Sagrado” (Folha de S.Paulo, caderno Esporte, 14/4/2013)
O COMENTÁRIO
de Paulo Vinícius, que considero procedente, leva-me a tecer algumas considerações
sobre o assunto. Há uma alegria e originalidade próprias dos vestiários
masculinos em geral, sobretudo quando ali se reúnem esportistas que já se
conhecem, pois se mostram autênticos, despojados e gozadores. No vestiário,
eles se “despem” literalmente, sem qualquer constrangimento. E dá-lhe tiração
de sarro! O vestiário é o momento de lavar o corpo e a alma, resolver as pendências
da partida, a hora do bate-boca e dos corriqueiros xingamentos. Não faltam insultos,
ofensas, desmoralização, humilhação... Na expressão corriqueira, é o momento de
“lavar a roupa suja”, ainda que, na maioria das vezes, se trate de coisas
tolas. É hora de descarregar o corpo, expressar a alegria de ganhar o jogo ou desabafar
a raiva contida durante a partida. Mas interessante é que o desabafo agressivo
é momentâneo, o jogador não guarda mágoas nem rancor. E então vem o melhor
depois do bate-boca no chuveiro: a programada cervejinha para festejar a
vitória ou esquecer a derrota, e espantar definitivamente os possíveis males
provenientes da última partida. O momento é de festa e reconciliação.
É claro que a
confraternização pós-jogo vai muito além da comemoração da vitória ou da
superação emocional com o time oposto. A prática do esporte não apenas envolve a
necessidade da movimentação e superação física, ela abre as portas para ampliar
o número de amigos na vida. E quem usufrui da companhia de amigos após uma
prática esportiva, descontraidamente, numa mesa de bar, por exemplo, sabe o que
significa esse tipo de congraçamento.
Quando se
trata de um vestiário masculino que reúne esportistas de diferentes categorias,
ele já tem outras características. Até as pessoas passarem a se reencontrar e se
conhecer um pouco, reina a timidez ou o desinteresse por um papo debaixo do
chuveiro. Exceto quando surge no vestiário alguém que costuma puxar uma conversa,
uma brincadeira, e cria uma atmosfera descontraída no local. Muitas amizades
são construídas nesse ambiente. Há exemplos de esportistas de modalidades diferentes
que originalmente se encontravam apenas em vestiários e se tornaram grandes
amigos.
Por outro
lado, há pessoas que a gente reencontra comumente no vestiário e se mostram
sempre sisudas, por uma questão de característica pessoal. Elas só conseguem se
descontrair ao encontrar algum conhecido. Em vestiários, de maneira geral,
existem os ‘apressados’ do banho rápido, que não querem ou não têm coragem de desencadear
um papo, e os indivíduos ‘maneiros’ e interessantes, que chamam a atenção e não
têm tanta pressa, proporcionando certamente um clima positivo.
Vestiários que
reúnem equipes de times são os mais efervescentes. Haja displicência! Ninguém
tem o menor cuidado com o que faz e fala. Ali vale tudo. E não falta a criação
dos oportunos apelidos, uma pura tiração de sarro, já que o que vale ali é a
diversão livre de qualquer preconceito. Porque o tirador de sarro em vestiários
representa alguém que vai contra as normas da sociedade e da boa educação, pois
sente-se ali à vontade e feliz, sem vergonha, sem se importar com a
interpretação dos outros. Geralmente, tal brincadeira é contagiante. Os outros gostam
e embalam no diálogo irreverente e zombeteiro. Em tal circunstância, todas as
regras não essenciais são abolidas. O resultado é uma solidariedade incomum,
uma produtiva zombaria comunitária.
Porque,
traçando um paralelo ao que revela o escritor Sérgio Freire, em seu artigo
“Solidariedade”, http://blogsergiofreire.wordpress.com,
a solidariedade é a presença certa de alguém tomando chuva com você, só para
fazer, pela conversa, o sangue continuar circulando e prolongar sua
resistência. “Solidário é companheiro de chuva. A solidariedade é a confirmação
da expectativa de que o outro vai retribuir aqueles momentos em que você,
calado ou brigando, prostrou-se na frente daquela batalha, porque acreditava em
uma causa, a mesma causa de quem hoje, com o mesmo vigor, prostra-se ao seu
lado. Solidário é companheiro de trincheira”, escreve o autor.
Para Freire, a
solidariedade é espontânea. “Vem por amor e não por remorso. Solidariedade que
não é espontânea cessa e titubeia na volta da primeira ameaça, recolhendo-se
novamente, assustada, e indo para onde de nunca deveria ter saído, no recôndito
da frieza, da apatia. Solidário é companheiro de sinceridade”, diz.
No mais,
descreve Sérgio Freire: “A vida é vivida a partir de parâmetros. Configuramos e
reconfiguramos valores e conceitos ao sabor das linhas desenhadas no caderno de
nossa existência. A solidariedade, sem dúvida, é amor. E do tipo mais nobre. Do
tipo mais inesquecível. Do tipo mais admirável. Hoje eu sei”.
Hoje sei eu disso
também. Mesmo com pessoas novas, eu consigo adequar a visão de solidariedade
segundo Freire. Ainda que algumas sejam indiferentes nos primeiros momentos, não
desisto de me relacionar com elas no espaço esportivo.
Porque “Lazer e atividade física em
grupo são as melhores formas de fazer amigos. São contextos propícios à
ampliação do círculo social. Além da saúde social, a saúde física é envolvida”,
diz também a psicóloga Luciana Karine de Souza, professora da Universidade Federal
de Minas Gerais (“Vá procurar sua turma”, Amanda Lourenço, Folha de S.Paulo, 23/10/2012).
Em sua crônica, Amanda escreve que a
falta de tempo também é uma razão (ou justificativa) para a atrofia das
amizades na idade adulta. Para ela, a disposição para se dedicar a novos amigos
desliza lá para o fim da lista de prioridades diárias.
“Amigos antigos, ou intimidades
antigas, ao menos, têm a grande vantagem de se gostarem como são, defeitos e
pontos fracos incluídos no kit. As
pessoas se sentem mais livres para ser elas mesmas nesse tipo de vínculo”,
explica o psicanalista Francisco Daudt, colunista da Folha e autor de “O amor
companheiro”. Eu poderia dizer que num vestiário solidário todos parecem amigos
antigos.
Já em novas aproximações, o esforço
precisa ser maior. “Adultos são mais seletivos. Fazer amizades exige energia
para investir. É preciso segurar as próprias manias e fazer concessões em nome
da nova relação, tolerando os defeitos do novo amigo”, diz a psicóloga Luciana
de Souza.
E viva o
saudável ambiente da chuveirada no dito “templo sagrado” dos atletas, após um
dia exaustivo de trabalho e uma dura rinha no “campo de batalha”.
O que têm as
mulheres a dizer sobre os vestiários femininos?...
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Revisão do
texto: Márcia Navarro Cipólli, navarro98@gmail.com
O QUE É ESPECIAL numa descrição como esta, é que não dá para descrevê-la de fora. É uma experiência pessoal.
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