Trata-se de crônicas de Marcelo Coelho, Contardo Calligaris e Drauzio Varella, publicadas na Folha de S.Paulo, Ilustrada, nos dias 11, 12 e 14 de março, respectivamente, abordando o estupro da menina pernambucana. Lamentavelmente, raros leitores têm acesso a reflexões importantes como essas, e é por isto que as sintetizo em meu blog, como possibilidade de ampliar a sua repercussão.
Na crônica de Contardo Calligaris, “Um arcebispo mais ou menos”, ele descreve o caso. No Recife, descobriu-se que uma menina de nove anos estava grávida de gêmeos. A mãe imaginava que a barriga crescente fosse o efeito de um parasito. Mas não era um parasito; era o padrasto, que abusava regularmente da menina e da irmã (de 14 anos, portadora de uma deficiência mental). O abuso começou quando as crianças tinham, respectivamente, seis e 11 anos.
Conta Contardo que o padrasto foi preso, e uma equipe médica, autorizada pela mãe, interrompeu a gravidez da menina, seguindo a lei brasileira, que permite a interrupção de gravidez em caso de risco de vida para a mãe e também em caso de estupro.
Quem conhece alguma menina de nove anos pode facilmente imaginar o que significaria submeter aquele corpo a uma gravidez completa e a um parto duplo, escreve o cronista.
Foi quando surgiu o arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho, declarando que os que estivessem envolvidos na interrupção da gravidez da menina (a mãe, os médicos, os enfermeiros) fossem excomungados. Agora, o padrasto não; pois o crime dele seria mais leve. Isso, segundo o bispo, é a “lei de Deus”.
O bispo se confundiu: essa não é a lei de Deus, é a lei da Igreja Católica, observa Contardo. “E faz alguns séculos que essa igreja não tem mais (se é que um dia teve) a autoridade moral para ela mesma acreditar que seus decretos sejam expressão da vontade divina. Portanto, sua persistência em tentar convencer os fiéis de que a voz da Igreja coincide com a voz de Deus se parece estranhamente com a conduta do padrasto da história (e de qualquer pedófilo): trata-se , em ambos os casos, de tirar proveito da ‘simplicidade’ de crianças e ingênuos”, ele complementa.
“... Deus pode ser o mesmo para todos porque ele não se relaciona com grupos ou pelo intermédio de grupos, mas com cada indivíduo, um a um... Ser moderno não significa topar qualquer parada e se perder no relativismo. Ao contrário, ser moderno (e ser cristão) significa tomar a responsabilidade de decidir no nosso foro íntimo o que nos parece certo ou errado. Claro, é mais difícil do que procurar respostas feitas e abstratas no direito canônico...”, reflete o cronista.
“Estupra, mas não aborta”
É o título da crônica de Marcelo Coelho. Quem já ouviu falar de bombas de fragmentação, também chamadas de “cluster” ou bombas-cacho? Marcelo explica: você lança uma bomba sobre uma área mais ou menos indefinida, uns quatro campos de futebol, digamos. Pontaria não é o importante, diz ele.
O objetivo não é destruir um alvo muito específico, como um centro de atividades terroristas, uma ponte, ou uma fábrica de armamentos no país inimigo. A bomba que você lançou – pode ser chamada de “bomba-mãe” – dá à luz a centenas de bombas menores, que se espalham pela região, como se fossem uma chuva de granadas, descreve o cronista.
Como ninguém é perfeito, muitas dessas “granadas” ou submunições não explodem na hora certa e ficam no solo, à espera de que uma criança invente de tocar nelas. De modo que a região se transforma num verdadeiro campo minado. Marcelo Coelho leu que, segundo a Cruz Vermelha, há 400 milhões de pessoas vivendo em terrenos semeados com essas bombas.
E olhem para a novidade: o Brasil é um dos países que produzem, estocam e exportam esse artefato bélico, revela Marcelo. Pelo que se sabe, essas “lança-granadas” são exportadas a países como Irã e Arábia Saudita. Por isso mesmo, o Brasil participou apenas como observador de uma convenção internacional no ano passado, na Noruega, em que 94 países assinaram um tratado para banir tais bombas.
Mais informações no site da ONU, www.mineaction.org, e também em www.clusterconvention.org, indica Marcelo Coelho.
Bem que o arcebispo de Olinda e Recife poderia aproveitar o embalo dos últimos dias e excomungar os produtores brasileiros dessas tais bombas de fragmentação, sugere o cronista.
Marcelo conta que veio de um padre, evidentemente contrário ao aborto, uma atitude mais bonita nesse episódio. Márcio Fabri dos Anjos, que é também professor de bioética, declarou na TV outro dia que “a primeira palavra que eu esperava ouvir da Igreja é a de que Deus está do lado de quem sofre”.
“Afinal, por que não ouvir, dialogar e consolar, antes de condenar? Fora da discussão do aborto, o que mais me incomoda é a ‘pauta’, como se diz em linguagem jornalística, que a hierarquia católica segue na maior parte do tempo. (...) Já que se trata de defesa da vida, as lideranças católicas podiam pensar nas bombas que o país produz, em vez de condenar a mãe de uma menina de nove anos estuprada pelo padrasto”, finaliza o cronista.
“Incoerência católica”
Este é o título da crônica de Drauzio Varella. Como médico, ele parabeniza os colegas de Pernambuco pelo abortamento na menina. “Nossa profissão foi criada para aliviar o sofrimento humano; exatamente o que vocês fizeram dentro da lei ao interromper a prenhez gemelar numa criança franzina”, considera. Diz mais: “Apesar da ausência de qualquer gesto de solidariedade por parte de nossas associações, conselhos regionais ou federais, estou certo de que lhes presto esta homenagem em nome de milhares de colegas nossos”.
Drauzio, em sua reflexão, pondera: “Não se deixem abater, é preciso entender as normas da Igreja Católica. Seu compromisso é com a vida depois da morte. Para ela, o sofrimento é purificador: ‘Chorai e gemei neste vale de lágrimas, porque vosso será o reino dos céus’, não é o que pregam?”
Segundo o cronista, trata-se de uma cosmovisão antagônica à da medicina: “Nenhum de nós daria tal conselho em lugar de analgésicos para alguém com cólica renal. Nosso compromisso profissional é com a vida terrena, o deles, com a eterna. Enquanto nossos pacientes cobram resultados concretos, os fiéis que os seguem precisam antes morrer para ter o direito de fazê-lo. Podemos acusar a Igreja Católica de inúmeros equívocos e de crimes contra a humanidade, jamais de incoerência. Incoerentes são os católicos que esperam dela atitudes incompatíveis com os princípios que a regem desde os tempos da Inquisição.”
Drauzio aborda ainda uma questão delicada: “Por que cobrar a excomunhão do padrasto estuprador, quando os católicos sempre silenciaram diante dos abusos sexuais contra meninos, perpetrados nos cantos das sacristias e dos colégios religiosos? Além da transferência para outras paróquias, qual a sanção aplicada contra os atos criminosos desses padres que nós, ex-alunos de colégios católicos, testemunhamos? Não há o que reclamar. A política do Vaticano é claríssima: não excomunga estupradores.”
É claro que Drauzio Varella reconhece as exceções: “Os católicos precisam ver a igreja como ela é, aferrada a sua lógica interna, seus princípios medievais, dogmas e cânones. Embora existam sacerdotes dignos de respeito e admiração, defensores dos anseios das pessoas humildes com as quais convivem, a burocracia hierárquica jamais lhes concederá voz ativa”.
Nos últimos tempos, minhas idas à igreja ocorrem por ocasião de missas celebradas em intenção da alma de pessoas conhecidas. Ao chegar a esse local, contemplo o silêncio do templo, que me inspira a conceber o que é próprio da natureza divina. Aprecio o ritual da missa, que me traz a sensação de conexão com o sagrado.
No entanto, durante a cerimônia eucarística, com raras exceções, quando os sacerdotes, em seus sermões, proclamam as verdades cristãs, é quando percebo a oportunidade que eles perdem de transformar concretamente a vida dos fiéis. Sim, porque o discurso abstrato resume-se ao perdão, ao pecado, à salvação... Não há salvação para o homem. Ele está condenado nesta vida. O sermão coloca Deus distante do homem. Não há comunicação eficaz, motivadora, que leve à reflexão, ao conhecimento produtivo, à tolerância, ao desejo de contribuir desinteressadamente com o progresso do outro e, portanto, a uma possível mudança positiva e progressiva de comportamento dos fiéis.
Na crônica de Contardo Calligaris, “Um arcebispo mais ou menos”, ele descreve o caso. No Recife, descobriu-se que uma menina de nove anos estava grávida de gêmeos. A mãe imaginava que a barriga crescente fosse o efeito de um parasito. Mas não era um parasito; era o padrasto, que abusava regularmente da menina e da irmã (de 14 anos, portadora de uma deficiência mental). O abuso começou quando as crianças tinham, respectivamente, seis e 11 anos.
Conta Contardo que o padrasto foi preso, e uma equipe médica, autorizada pela mãe, interrompeu a gravidez da menina, seguindo a lei brasileira, que permite a interrupção de gravidez em caso de risco de vida para a mãe e também em caso de estupro.
Quem conhece alguma menina de nove anos pode facilmente imaginar o que significaria submeter aquele corpo a uma gravidez completa e a um parto duplo, escreve o cronista.
Foi quando surgiu o arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho, declarando que os que estivessem envolvidos na interrupção da gravidez da menina (a mãe, os médicos, os enfermeiros) fossem excomungados. Agora, o padrasto não; pois o crime dele seria mais leve. Isso, segundo o bispo, é a “lei de Deus”.
O bispo se confundiu: essa não é a lei de Deus, é a lei da Igreja Católica, observa Contardo. “E faz alguns séculos que essa igreja não tem mais (se é que um dia teve) a autoridade moral para ela mesma acreditar que seus decretos sejam expressão da vontade divina. Portanto, sua persistência em tentar convencer os fiéis de que a voz da Igreja coincide com a voz de Deus se parece estranhamente com a conduta do padrasto da história (e de qualquer pedófilo): trata-se , em ambos os casos, de tirar proveito da ‘simplicidade’ de crianças e ingênuos”, ele complementa.
“... Deus pode ser o mesmo para todos porque ele não se relaciona com grupos ou pelo intermédio de grupos, mas com cada indivíduo, um a um... Ser moderno não significa topar qualquer parada e se perder no relativismo. Ao contrário, ser moderno (e ser cristão) significa tomar a responsabilidade de decidir no nosso foro íntimo o que nos parece certo ou errado. Claro, é mais difícil do que procurar respostas feitas e abstratas no direito canônico...”, reflete o cronista.
“Estupra, mas não aborta”
É o título da crônica de Marcelo Coelho. Quem já ouviu falar de bombas de fragmentação, também chamadas de “cluster” ou bombas-cacho? Marcelo explica: você lança uma bomba sobre uma área mais ou menos indefinida, uns quatro campos de futebol, digamos. Pontaria não é o importante, diz ele.
O objetivo não é destruir um alvo muito específico, como um centro de atividades terroristas, uma ponte, ou uma fábrica de armamentos no país inimigo. A bomba que você lançou – pode ser chamada de “bomba-mãe” – dá à luz a centenas de bombas menores, que se espalham pela região, como se fossem uma chuva de granadas, descreve o cronista.
Como ninguém é perfeito, muitas dessas “granadas” ou submunições não explodem na hora certa e ficam no solo, à espera de que uma criança invente de tocar nelas. De modo que a região se transforma num verdadeiro campo minado. Marcelo Coelho leu que, segundo a Cruz Vermelha, há 400 milhões de pessoas vivendo em terrenos semeados com essas bombas.
E olhem para a novidade: o Brasil é um dos países que produzem, estocam e exportam esse artefato bélico, revela Marcelo. Pelo que se sabe, essas “lança-granadas” são exportadas a países como Irã e Arábia Saudita. Por isso mesmo, o Brasil participou apenas como observador de uma convenção internacional no ano passado, na Noruega, em que 94 países assinaram um tratado para banir tais bombas.
Mais informações no site da ONU, www.mineaction.org, e também em www.clusterconvention.org, indica Marcelo Coelho.
Bem que o arcebispo de Olinda e Recife poderia aproveitar o embalo dos últimos dias e excomungar os produtores brasileiros dessas tais bombas de fragmentação, sugere o cronista.
Marcelo conta que veio de um padre, evidentemente contrário ao aborto, uma atitude mais bonita nesse episódio. Márcio Fabri dos Anjos, que é também professor de bioética, declarou na TV outro dia que “a primeira palavra que eu esperava ouvir da Igreja é a de que Deus está do lado de quem sofre”.
“Afinal, por que não ouvir, dialogar e consolar, antes de condenar? Fora da discussão do aborto, o que mais me incomoda é a ‘pauta’, como se diz em linguagem jornalística, que a hierarquia católica segue na maior parte do tempo. (...) Já que se trata de defesa da vida, as lideranças católicas podiam pensar nas bombas que o país produz, em vez de condenar a mãe de uma menina de nove anos estuprada pelo padrasto”, finaliza o cronista.
“Incoerência católica”
Este é o título da crônica de Drauzio Varella. Como médico, ele parabeniza os colegas de Pernambuco pelo abortamento na menina. “Nossa profissão foi criada para aliviar o sofrimento humano; exatamente o que vocês fizeram dentro da lei ao interromper a prenhez gemelar numa criança franzina”, considera. Diz mais: “Apesar da ausência de qualquer gesto de solidariedade por parte de nossas associações, conselhos regionais ou federais, estou certo de que lhes presto esta homenagem em nome de milhares de colegas nossos”.
Drauzio, em sua reflexão, pondera: “Não se deixem abater, é preciso entender as normas da Igreja Católica. Seu compromisso é com a vida depois da morte. Para ela, o sofrimento é purificador: ‘Chorai e gemei neste vale de lágrimas, porque vosso será o reino dos céus’, não é o que pregam?”
Segundo o cronista, trata-se de uma cosmovisão antagônica à da medicina: “Nenhum de nós daria tal conselho em lugar de analgésicos para alguém com cólica renal. Nosso compromisso profissional é com a vida terrena, o deles, com a eterna. Enquanto nossos pacientes cobram resultados concretos, os fiéis que os seguem precisam antes morrer para ter o direito de fazê-lo. Podemos acusar a Igreja Católica de inúmeros equívocos e de crimes contra a humanidade, jamais de incoerência. Incoerentes são os católicos que esperam dela atitudes incompatíveis com os princípios que a regem desde os tempos da Inquisição.”
Drauzio aborda ainda uma questão delicada: “Por que cobrar a excomunhão do padrasto estuprador, quando os católicos sempre silenciaram diante dos abusos sexuais contra meninos, perpetrados nos cantos das sacristias e dos colégios religiosos? Além da transferência para outras paróquias, qual a sanção aplicada contra os atos criminosos desses padres que nós, ex-alunos de colégios católicos, testemunhamos? Não há o que reclamar. A política do Vaticano é claríssima: não excomunga estupradores.”
É claro que Drauzio Varella reconhece as exceções: “Os católicos precisam ver a igreja como ela é, aferrada a sua lógica interna, seus princípios medievais, dogmas e cânones. Embora existam sacerdotes dignos de respeito e admiração, defensores dos anseios das pessoas humildes com as quais convivem, a burocracia hierárquica jamais lhes concederá voz ativa”.
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Nos últimos tempos, minhas idas à igreja ocorrem por ocasião de missas celebradas em intenção da alma de pessoas conhecidas. Ao chegar a esse local, contemplo o silêncio do templo, que me inspira a conceber o que é próprio da natureza divina. Aprecio o ritual da missa, que me traz a sensação de conexão com o sagrado.
No entanto, durante a cerimônia eucarística, com raras exceções, quando os sacerdotes, em seus sermões, proclamam as verdades cristãs, é quando percebo a oportunidade que eles perdem de transformar concretamente a vida dos fiéis. Sim, porque o discurso abstrato resume-se ao perdão, ao pecado, à salvação... Não há salvação para o homem. Ele está condenado nesta vida. O sermão coloca Deus distante do homem. Não há comunicação eficaz, motivadora, que leve à reflexão, ao conhecimento produtivo, à tolerância, ao desejo de contribuir desinteressadamente com o progresso do outro e, portanto, a uma possível mudança positiva e progressiva de comportamento dos fiéis.
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