Procuram-se: leitores, telespectadores e ouvintes que se negaram a acompanhar diariamente a espetacularização dessa tragédia. Por que as pessoas têm necessidade de sintonizar dramas dessa natureza? Quem, porventura, deixou de lado o julgamento de Lindemberg Fernandes Alves, 22, e buscou um entendimento mais amplo do acontecimento?
Foram raras as reflexões da mídia sobre os efeitos da espetacularização, transformando Lindemberg em celebridade nacional. Neste artigo, abordo algumas dessas reflexões.
No dia 13 de outubro, Lindemberg invadiu, armado, o apartamento da ex-namorada, Eloá Cristina Pimentel, 15, em Santo André (SP). A amiga de Eloá, Nayara Rodrigues da Silva, 15, tentou negociar o fim do cativeiro, sintetiza o jornal Folha de S.Paulo, "Mais!", de 26 de outubro.
Após cem horas de cárcere privado e diálogo com a polícia, o episódio terminou com as duas jovens baleadas. O seqüestrador foi preso. Eloá morreu no hospital, no dia 18, e Nayara sofreu ferimentos no rosto.
No artigo "Eu sou o cara" (Folha, "Mais!", 26 de outubro), o autor Renato Mezan observa que "as emissoras precisam rever sua idéia do que é informar: a busca insensata dos picos de audiência as levou a se tornarem cúmplices involuntárias de um assassinato". Que se lembrem disso quando o próximo seqüestrador apontar a arma para a sua vítima, diz Mezan, psicanalista e professor titular da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP).
Para o psicanalista, "um dos aspectos mais comentados do seqüestro que comoveu o país nas duas últimas semanas foi a atuação das emissoras de TV. Escudadas na ‘missão de informar’ – mas, na verdade, sequiosas de superar a qualquer custo a audiência das demais -, acabaram fornecendo a Lindemberg Alves informações preciosas sobre a posição e as ações dos policiais e, com sua irresponsabilidade, provavelmente contribuíram para o desfecho trágico do episódio.
Reflexões sobre a tragédia
Segundo editorial da Folha de 22 de outubro, [...] "incidentes dramáticos como esse seqüestro não deveriam servir à espetacularização. Cada episódio é único em suas circunstâncias, mas há limites que deveriam ser ditados pela autoridade policial. É verossímil que a notoriedade pública concedida ao homicida tenha agravado e prolongado o episódio. Algumas emissoras de TV amplificaram os aspectos mais dramáticos do evento. Mas tal deslize só costuma ocorrer quando autoridades também aceitam participar do show".
No artigo "Liberdade de reflexão" (Folha, "Cotidiano", de 24 de outubro), relata Suely Gevertz, psicóloga clínica e psicanalista (coordenadora da Comissão de Mídia da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo): "Na minha área de atuação, surge uma curiosidade a respeito da alma humana. Qual é a personalidade do seqüestrador? O que o motivou a seqüestrar sua ex-namorada? Ciúme? Frustração? Estrutura familiar? Mostram-se depoimentos de amigos e familiares dos adolescentes envolvidos na situação com o propósito de procurar uma característica psíquica de Lindemberg que justificasse seu ato".
Suely Gevertz explica que "a psicanálise estuda o requintado, sutil e delicado processo por que passa a mente humana em seu desenvolvimento desde a infância. Basicamente, esse processo envolve a vivência e a elaboração das experiências afetivas, dando um significado a elas e um sentido para o viver. Uma pena que somente em situações trágicas as pessoas se interessem pela mente humana, presente em todo seu viver, trágico e feliz, dolorido e alegre, no contato e nas relações entre seres humanos, na cultura e na sociedade. Buscar explicações somente no que ocorre no psiquismo não justifica o seqüestro de Eloá. Um seqüestro envolve uma situação muito mais complexa. Estão presentes o indivíduo, a cultura, a sociedade e muito mais em uma trama de relacionamento entre as pessoas e nessas instâncias."
Para a psicóloga, "O que se observou na semana passada não foi somente um seqüestro. Foi um fenômeno de psicologia de massas. O seqüestro de Eloá foi o início da exploração de um episódio muito maior que envolveu a todos, tornou-se um acontecimento do qual todas as pessoas participaram. Não fomos somente meros expectadores do seqüestro, e, sim, participantes do evento social do seqüestro. Assistiu-se TV, ouviu-se rádio, buscaram-se notícias sobre o seqüestro – que foi parte integrante da maioria das conversas entre pessoas -, produziram-se notícias. Estimulamos e fomos estimulados por tudo aquilo que podia estar envolvido na situação. Assistimos e participamos de um espetáculo".
Características psíquicas
"O que ele via em Eloá, que a tornava tão indispensável a sua sobrevivência psíquica? Claramente, bem mais que um objeto de desejo ou de amor. Tudo indica que havia projetado nela algo de si mesmo, uma parte ao mesmo tempo amada, odiada e temida, que nem podia recuperar nem tolerar que fosse embora", analisa o psicanalista Renato Mezan.
Para Meza, "Esse modo de estabelecer vínculos é menos raro do que se poderia supor. Ele tem o nome de ‘relação de objeto narcísica’ e, quando se instala, acarreta conseqüências bastante graves – embora deva ficar claro que, no mais das vezes, não levam o sujeito a matar alguém".
Em primeiro lugar, reflete o psicanalista, a relação com os outros significativos (pais, namorados, cônjuges) é permeada por projeções maciças: eles se convertem em artigos de primeira necessidade, um pouco como a droga para o adicto. Deles se exigem uma presença física e um grau de atenção que comprovem o quanto amam o sujeito; mas, como o que este almeja é fundir-se com o objeto para poder controlá-lo, por assim dizer, ‘de dentro’, o fato de que o ser amado é diferente dele e tem vida própria é sentido como insuportável.
Renato Mezan complementa que a ameaça de o perder (real ou imaginária) desencadeia uma angústia aterradora, que freqüentemente se exprime por ciúmes patológicos e por atuações que podem chegar à violência. Pelo que mostrou de si durante o seqüestro, Lindemberg parece fazer parte desse grupo de pessoas, diz o psicanalista.
Isto me faz lembrar um trecho de "Se eu pudesse viver minha vida novamente...", de Rubem Alves: [...] "Escrevi, faz muitos anos, uma estória para a minha filha de quatro anos. Era sobre um Pássaro Encantado e uma Menina que se amavam. O Pássaro era encantado porque não vivia em gaiolas, vinha quando queria, partia quando queria... A Menina sofria com isso, porque amava o Pássaro e queria que ele fosse seu para sempre. Aí ela teve um pensamento perverso: ‘Se eu prender o Pássaro Encantado numa gaiola, ele nunca mais partirá, e seremos felizes, sem fim...’ E foi isso que ela fez. Mas aconteceu o que ela não imaginava: o Pássaro perdeu o encanto. A Menina não sabia que, para ser encantado, o Pássaro precisava voar..."
Chamada à realidade
"Lindemberg estava com a consciência ‘sombreada pela paixão’ e precisava de negociadores habilidosos que o trouxessem de volta à realidade", cita o artigo de Denise Menchen, da sucursal do Rio da Folha de S.Paulo de 27 de outubro, em entrevista a Marília Etienne Arreguy, doutora em psicanálise e psicopatologia pela Universidade de Paris Diderot (Paris 7), que se dedica à pesquisa de temas como ciúme, paixão, amor e agressão entre casais. Para a especialista, atitudes como a do rapaz podem ocorrer com qualquer pessoa que viva uma relação passional exacerbada.
Marília Arreguy acredita que exista uma responsabilidade social aí também. Os jovens precisam ser instruídos sobre a delicadeza do coração, da alma e da vida humana. Isso tem a ver com a forma como as relações da pessoa se estruturaram desde pequena. Mas não se pode afirmar categoricamente, prossegue a especialista, que Lindemberg tinha o ‘germe’ da passionalidade violenta ou o ‘germe do crime’ em si mesmo. "Do mesmo jeito que alguém pode pegar (o vírus) HIV e desenvolver a doença (Aids), outros são mais resistentes e ficam com o vírus incubado. Então as pessoas têm que ter resistência a esses sofrimentos da vida", diz.
A respeito da atuação da mídia no episódio, Marília comentou: "Foi muito equivocada. A exposição midiática acende o fogo das paixões, principalmente das paixões narcísicas. Na nossa cultura, a pessoa só é boa se tem sucesso, se aparece na televisão, na mídia. Isso mexe com as emoções das pessoas, ainda mais de uma pessoa que já está perturbada. Analogamente, podemos comparar Lindemberg a um animal acuado. Todo animal, se tem a chance de fugir, foge. Mas, se está acuado, exposto e em risco, ele ataca. Lindemberg possivelmente foi ficando cada vez mais acuado com a dimensão que a ação dele foi tomando. Talvez ele tenha percebido que não tinha saída".
"Eu acho que a sociedade precisa ser muito bem informada sobre esses casos, mas o problema é o sensacionalismo que é gerado em torno disso e quando a atividade dos jornalistas interfere negativamente no trabalho de negociação e investigação policial", arremata a especialista.
Acontecimento midiático
"Por que será que existe um louvável acordo entre os dirigentes dos meios de comunicação de não divulgação de seqüestros que envolvam resgate, para não atrapalhar as negociações, e os seqüestros, como o ocorrido em Santo André, viram um acontecimento midiático?, indaga a psicóloga Suely Gevertz. "Lindemberg conversou com o negociador policial e com jornalistas na frente das câmaras de TV. Estava em rede nacional 24 horas, diariamente aparecia em jornais escritos e televisivos e na internet. Foi mais citado que qualquer outra pessoa ou acontecimento do mundo na mídia brasileira, enquanto durou o seqüestro. Ele assistia e ouvia, no cativeiro, o mesmo que todos nós. Como ele mesmo disse: Eu sou o cara", conta a psicóloga.
Gevertz diz também: "Lindemberg era participante e telespectador do espetáculo. Tinha acesso às opiniões emitidas sobre sua personalidade, suas possíveis motivações, seu enquadramento jurídico, declarações de seus amigos e os de suas reféns etc. Será que alguém imagina ser possível alguma negociação exitosa para a libertação de reféns no espetáculo montado? Afinal, era uma experiência terrível e catastrófica que envolvia o seqüestrador, seus reféns, familiares, amigos e companheiros ou um show?"
Ela faz então um apelo: "Espero que os responsáveis pela mídia, pela produção e emissão das notícias tratem situações como a ocorrida na semana passada igualmente àquelas de seqüestro de pessoas que exigem resgate para a libertação de reféns. É necessário que surjam mais situações como essa, com perda de vidas, para se tomar uma posição?"
Para fortalecer o apelo de Gevertz, Renato Mezan enfatiza: "... ficam as lições das quais bastante se falou nos últimos dias. Mesmo que nada garanta que um seqüestrador enlouquecido não vá matar sua vítima, a polícia deve receber os equipamentos que poderiam ter monitorado o que se passava no apartamento, e as emissoras precisam rever sua idéia do que é informar... Que se lembrem disso quando o próximo seqüestrador apontar a arma para a sua vítima".
A jurista Maria José Nogueira Pinto, em seu artigo "A importância da palavra" (Diário de Notícias, "Opinião", Lisboa – Portugal, 22 de setembro de 2006), comenta que "O trabalho jornalístico passou à condição de ‘diz que disse’ e o cidadão sabe mais sobre o efêmero e o irrelevante do que sobre o que, sendo essencial, o defende e ameaça". Bed Bradlee, professor de Jornalismo que foi diretor do ‘Washington Post’, dizia: "Por detrás de uma informação deficiente existe sempre uma formação deficiente", acrescenta a jurista.
Em termos do desejo incessante do público em acompanhar tragédias pela mídia, inspiro-me em Aristóteles, filósofo grego, com base em "Revolução da alma", que escreveu no ano 360 a.C.: "Critica menos, trabalha mais. A nossa compreensão do universo ainda é muito pequena para julgar o que quer que seja em nossa vida".
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(Leia também neste blog: "Caso Isabella Nardoni", 28 de julho de 2008)
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